Quando acordei o sol já ia alto no céu da Galiléia, refletindo-se no espelho d'água à minha frente. Tinha ainda em minha mão a flauta, e sem soltá-la, apoiei-me na pedra para me sentar. Minhas costas doíam, e percebi que havia dormido uma noite inteira naquele local. Imediatamente me lembrei da tua presença no fim da tarde do dia anterior e te procurei, levantando-me.
- Estou aqui, filho. - disse você, alguns passos atrás de mim, em pé, ainda com as vestes de ontem. - Parece que passamos a noite ao relento.
Ainda aturdido, concordei, mudo.
- Tive um sonho estranho, pai. - comecei, ainda sem saber ao certo o que sonhara.
Você buscou os meus olhos e meneou a cabeça.
- Eu também. - você respondeu.
Desviei seu olhar, e pus-me a continuar:
- Sonhei que vivíamos há muitos estádios daqui, num tempo que ainda está por vir. Vestíamos tecidos diferentes do que estamos usando e falávamos uma língua esquisita, embora compreendêssemos tudo.
Você continuava ouvindo, e seu semblante demonstrava espanto. Eu prossegui:
- Foi um sonho tão complexo e tão extenso, que pareço ter dormido meses. Em que dia estamos?
Você arqueou as sombrancelhas, protegeu os olhos do sol, olhou por sobre meu ombro e concluiu:
- Não sei, mas o barco de Pedro está no mesmo lugar de ontem e sua túnica ainda permanece no varal.
Me virei e deslumbrei-me com a vista. O Tiberíades imponente e as várias casas próximas a sua beira. Algumas crianças corriam próximas a uma delas, assim como eu havia feito alguns anos antes. Levantei os olhos e pude apreciar a revoada de pássaros até pousarem novamente na copa de uma das inúmeras árvores à nossa volta.
Enfim, me voltei mais uma vez para você. O sonho já estava cristalizado em minha memória. Mas, antes, perguntei:
- Como foi o seu sonho?
Você suspirou por um momento, enquanto eu me aproximava e, apenas quando começamos a caminhar lentamente de volta para casa, você falou:
- Meu sonho se passa no mesmo lugar, embora, no início, você não estivesse comigo. Aliás, ele começa alguns anos antes do seu.
- E fostes meu pai, assim como eu sonhei?
- Hum, hum. - você concordou.
- E nos amávamos como hoje nos amamos?
- Exatamente. - você disse. E começou: - Ainda que...
- Ainda que no fim do sonho estivéssemos afastados em corpo. - eu completei.
- É isso.
- Ainda bem que acordamos. - eu disse, confidenciando-lhe logo depois: - Não estava gostando do rumo que nossas vidas tomavam no sonho.
- Por isso acordamos. - você retrucou. - Porque nenhum pesadelo pode se tornar tão ruim a ponto de não podermos acordar dele.
Coloquei meu braço por sobre teu ombro enquanto continuávamos andando. E ficamos assim, calados, boa parte do resto do percurso. Depois, comecei a tocar a flauta, para espantar o sonho estranho para o outro lado da Palestina.
E quando olhei pra você, pude ver o sorriso em tua face queimada pelo sol.
Estávamos nos aproximando de casa, e já podíamos escutar as vozes das mulheres na cozinha. Antes de descermos o pequeno barranco de terra, parei de soprar a melodia, segurei o teu braço, olhei no fundo da tua grande alma e disse:
- Eu te amo.