sábado, outubro 01, 2005

Saxofone

É um homem dividido, este.

Novamente, ainda ou finalmente, não saberia dizer.

Sei apenas que é um parto descobrir-se, mas isso todos sabem. O que nem todo mundo sabe é que não preciso dos óculos nesse momento. E abandono também a razão, pois não é dela que saem estas linhas.

E então, estou no barco, interrompendo o rastro silencioso que o luar trilha na água escura desta noite eterna. Balanço junto com as pequenas ondas que lambem seu casco branco, flutuando a nau, eu e os meus sonhos.

Da proa os meus olhos que, por milagre, não são mais míopes, vêem as estrelas cravejarem o céu negro. Atrás de mim está a praia, a uns dois ou três quilômetros. Tenho em mãos um saxofone que reflete a luz amarela que vem lá de baixo, de dentro do barco.

O silêncio parece falar comigo, neste momento que é um dos mais importantes da minha vida, e é por isso que converso com o céu, através do sax que verte melodia que volatiza-se no vento úmido dessa noite de primavera.

Quase posso ouvir resposta e sorrio. Pressinto algo. Levanto os olhos para o zênite e as estrelas piscam, cúmplices.

- Seria mais fácil se vocês falassem - digo em voz alta.
- Mas nós falamos - responde uma voz atrás de mim.

Giro sobre meus calcanhares para certificar-me de minha sanidade, mas não saberia explicar o que vejo, pois o corpo dele parece ter luz própria. Mais baixo do que eu, é grandioso em presença. É desproporcional: sua cabeça destoa do resto de seu corpo, assim como suas mãos as quais ele estende para pegar o saxofone.

O pequeno orifício no lugar da boca parece incapaz de soprá-lo, mas quando o faz, o mar pára. Não há mais marola ou balanço, nem o vento revolve meus cabelos. Somente música.

A melodia descreve toda a trajetória do universo. Em cada nota o surgimento de uma civilização diferente, com seus sóis e luas. A criação da vida, aqui e fora daqui. Na beleza daqueles sons, a profecia de um futuro melhor.

Mentalmente pergunto a mim mesmo o por quê de todo este processo e, imediatamente, a música termina. Ele me entrega o saxofone e sorri como quem sorri para uma criança. Segura minha mão e eu já não tenho mais peso.

Lá embaixo está o barco com o sax no chão de madeira. Posso ver a costa à minha direita, enquanto o luar continua a banhar-nos a frente.

Até que eu finalmente já não faço mais parte daqui.

E no instante seguinte estou no interior do barco e posso escutar a música que toco na proa. O saxofone tem um som realmente bonito.

Mas a música pára, abrupta. Ouço uma voz tão bela quanto o som que sai do saxofone instantes depois. Sinto como se estivesse dormente, um momento transcendente que dura pouco, mas que é um regozijo à alma.

Caminho para a escada, de onde posso ver a mim e a um ser luminoso. Não o conheço, mas o admiro. Reconheço minha voz saindo daquele sujeito pasmo que sou eu. O ser estende a mão e os dois flutuam. Corro para fora e, ao olhar para cima, já não sou mais eu.

Só que, então, como preso dentro de um vinil arranhado, estou novamente no barco. Objetos de não-amor cobrem a mesa suja. Entre ela e a cama desarrumada há um lixo com pontas de cigarro.

Um som agudo e estridente machuca-me os ouvidos. Sou eu tentando tirar algumas notas do saxofone. A clarabóia opaca pela poeira me impede de ver o céu no qual se forma uma tempestade. Subo as escadas que rangem ao contato com meus passos. Paro e vejo que não mais toco o instrumento. Estou falando sozinho, pois não há ninguém na proa comigo. Estendo o saxofone para o nada e ele cai, baque surdo no chão de madeira que em breve a chuva vai encharcar.

Volto para dentro do barco e volto a me deitar. Há muito que não tenho uma boa noite de sono e eu pelo jeito não será hoje que a terei.

5 Comments:

At 7:41 PM, Anonymous Anônimo said...

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At 10:23 AM, Anonymous Anônimo said...

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sinto saudades de conversar com vc.

um grande bj e bom fim de semana.

ass: gabi

 
At 7:27 PM, Blogger rmussilac said...

mais uma vez...mais uma vez...como é bom visitar essa sala.

beijos grande

 
At 8:07 PM, Anonymous Anônimo said...

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